Direito à saúde bucal pode virar lei

A atenção à saúde bucal poderá receber status de direito com proteção da lei. Dois projetos do Senado trazem a proposta de explicitar na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990) a saúde bucal como parte do campo de atuação do SUS.

O PLS 8/2017, do senador Humberto Costa (PT-PE), institucionaliza a Política Nacional de Saúde Bucal, que vem sendo implantada desde 2004 por portaria do Ministério da Saúde e recebeu o nome de Brasil Sorridente.

O PLS 193/2017, do senador Eduardo Lopes (PRB-RJ), determina que tenham prioridade no atendimento odontológico os pacientes internados, os portadores de condições clínicas especiais e as pessoas com deficiência.

O PLS 8/2017 foi aprovado em julho em decisão terminativa pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Como não houve recurso para votação no Plenário, já foi remetido para a Câmara.

O PLS 193/2017 ainda está em debate na CAS, onde será relatado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

Humberto diz que o objetivo de seu projeto é transformar o Brasil Sorridente de política de governo em política de Estado, para que as mudanças de governo não representem uma ameaça de desmonte das ações.

— O programa rapidamente implicou uma mudança significativa dos indicadores de saúde bucal. O número de dentes cariados por pessoa e o número de extrações dentárias mudaram significativamente. É uma política exitosa.

A proposta de Lopes enfatiza a chamada assistência terciária, prestada a pacientes internados, a pessoas com deficiência, a portadores de condições clínicas especiais, como gestantes de alto risco, diabéticos e doentes do coração. O senador dá exemplos que justificam concentrar esforços:

— Infecções respiratórias são especialmente comuns em pacientes internados que apresentam higiene bucal insatisfatória, o que complica o quadro clínico, podendo provocar internações prolongadas e caras, além do risco de morte.

Para Lopes, a assistência odontológica no Brasil ainda não é prestada de forma eficiente. Ele considera pouca a importância dada à odontologia no SUS, especialmente no atendimento hospitalar.

— Por isso é fundamental explicitar na Lei Orgânica da Saúde que a saúde bucal também é direito de todos e dever do Estado. Essa medida vai equiparar a assistência à saúde bucal às demais áreas da saúde, priorizando o atendimento aos que dela mais necessitam.

Um terceiro projeto também trata do tema no Senado. O PLS 387/2014, do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), estabelece o piso salarial dos técnicos e dos auxiliares em saúde bucal e modifica a competência dos técnicos. As duas profissões foram regulamentadas em 2008, mas, como explica o autor da proposta, a regulamentação não estabeleceu o piso para as categorias profissionais. O projeto está em tramitação na Comissão de Educação (CE).

Brasil Sorridente

A Constituição de 1988 definiu a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. A Lei Orgânica da Saúde, editada em 1990, tratou das condições para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, além do funcionamento dos serviços relacionados à área. Porém, apenas em 2004, com o lançamento do Brasil Sorridente, foi que a saúde bucal passou a ter uma política pública consonante com os princípios do SUS.

O senador Humberto Costa era o ministro da Saúde na época da implantação do Brasil Sorridente. Ele explicou que esse é um dos programas que têm a visão mais integral em termos de saúde:

— Ele vai desde a promoção, passando pela prevenção, até a cura e em muitos casos passando também pela reabilitação.

As ações de promoção e prevenção ficam a cargo das equipes de saúde bucal que trabalham conjuntamente com as equipes de saúde da família nas residências e nos postos de saúde. Há também o estímulo para que as prefeituras adotem a fluoretação da água para consumo da população.

— Uma criança que antes não tinha a menor noção da necessidade de escovação, da necessidade de selecionar o tipo de alimento que come, que não tinha água fluoretada, tinha com certeza o destino de precisar de um processo de obturação ou de um tratamento mais sofisticado e, portanto, mais caro. Nessa área, a prevenção e a promoção conseguem reduzir drasticamente esse gasto maior.

O senador relatou ainda que o programa também oferece à população o atendimento de maior complexidade. Para isso, foram criados os Centros Especializados em Odontologia (CEOs), onde são prestados serviços de tratamento de canal (endodontia), de correção de problemas de má distribuição dos dentes (ortodontia), cirurgias orais menores, tratamento de pessoas portadoras de necessidades especiais e tratamento do câncer de boca.

Humberto destaca que a criação do Brasil Sorridente também resultou na valorização da profissão de odontologista no país, tendo absorvido milhares de profissionais que estavam sem oportunidade no mercado de trabalho.

— O Brasil tem uma expertise hoje não só pelo programa, mas também pela qualificação dos profissionais de odontologia que tem. Muita gente vem de fora para fazer tratamento odontológico aqui não somente porque é mais barato, mas porque nós temos bons profissionais. Isso permite que o Brasil se destaque no campo da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico.

Mudança cultural

A extração dentária indiscriminada pode ter ajudado a criar uma cultura de medo de ir ao dentista. Sobre os possíveis efeitos desse aspecto cultural, Humberto disse acreditar que está havendo mudanças, principalmente pelo instrumental moderno hoje disponível, como os anestésicos locais que se usam antes de aplicar a injeção como anestésico principal, e pelas próprias ações educativas das equipes de Saúde da Família nas escolas.

Para o senador, no entanto, a principal mudança cultural é fazer com que as pessoas deem a importância à sua saúde bucal:

— Que elas saibam que é por ali que muitas das doenças que elas têm ingressam, que elas precisam ao menor sinal de alguma coisa diferente procurar um dentista, que aquilo pode ser um câncer que está se iniciando.

Humberto ressaltou que a iniciativa de transformar o Brasil Sorridente em lei tem o apoio de organizações de odontologistas, que se mobilizaram pela aprovação no Senado e fazem o mesmo na Câmara.

— O projeto é mais deles do que propriamente meu, apesar de ter sido implantando na minha gestão. É uma conquista da categoria. Os dentistas hoje são mais valorizados profissionalmente e cientificamente e têm por esse programa um carinho muito especial. Acredito que em breve nós teremos isso como uma lei — disse o senador.

Excesso de extração criou geração de desdentados

A perda dentária é considerada um dos principais prejuízos à saúde bucal devido à sua alta ocorrência e aos danos estéticos, funcionais, psicológicos e sociais que acarreta. Além do mais, é uma perda evitável.

Estudos epidemiológicos mostram que as perdas dentárias são uma marca da desigualdade social em diversas sociedades, o que não é diferente no Brasil. As perdas dentárias são maiores nos estratos de menor renda.

— A saúde bucal nunca foi um direito de cidadania. Quem precisava de tratamento odontológico ou mesmo ações de prevenção tinha que pagar por ela ou acessava os serviços públicos de saúde, que eram muito escassos e ofertavam na maioria das vezes apenas a extração dentária. Isso produziu resultados muito ruins no Brasil — explica o professor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) Gilberto Pucca.

Um levantamento feito em 2003 pelo Ministério da Saúde revelou uma situação dramática: 3 em cada 4 pessoas com mais de 60 anos já havia perdido todos os 32 dentes da boca.

— Isso significa ter sido submetido a 32 cirurgias odontológicas. Esses dentes não foram perdidos por acaso. Na realidade, o Brasil vivia um processo de mutilação em massa da população pobre, que não tinha acesso às ações de promoção da saúde e a tratamentos odontológicos — condenou Pucca.

Para o professor, as perdas dentárias no Brasil sempre foram consideradas algo natural. Na avaliação dele, a saúde bucal só é considerada essencial por quem tem dinheiro.

— Eu sempre pergunto em sala de aula: “Se você perder um dente, vai ficar incomodado? Se tiver uma cárie no dente, vai ficar incomodado? Por que quem não tem dinheiro não fica incomodado?”. Porque [é visto como natural] que quem tem dinheiro tem tratamento odontológico, tem sorriso, tem auto-estima. Quem não tem dinheiro extrai o dente ou faz uma dentadura, e isso é normal. Mas não é normal perder dentes. Nós estamos falando de saúde, não apenas de estética. Vários estudos têm mostrado o impacto que a saúde bucal tem na autoestima das pessoas.

Avanços

Pucca coordenou o Brasil Sorridente desde a sua implantação até 2016.

— Após sete anos, de 2004 a 2010, 44% das crianças brasileiras chegaram aos 12 anos de idade sem cárie. Isso nos colocou na classificação da OMS [Organização Mundial de Saúde] como país de baixa prevalência de cárie. Isso significa que o programa estava no caminho certo.

A integração com a atenção básica é um dos destaques do programa. Segundo Pucca, com o Brasil Sorridente, o número de equipes de saúde bucal saltou de 4,3 mil em 2003 para 24 mil em 2013.

— Em 2003, não cobríamos nem 5% da população brasileira com a equipe de saúde bucal na atenção básica, que é justamente o nível onde se deve alcançar o número maior de pessoas — calculou.

Cada equipe atende mil famílias (cerca de 4 mil pessoas).

— Não adianta continuarmos apenas criando serviços odontológicos. Eles são necessários porque a demanda reprimida é alta. Mas se não fecharmos a torneira de produção da doença, isso não se equaciona. E quem fecha a torneira são as equipes de atenção básica. Elas fazem toda a parte de prevenção na escola, na família, nos postos de saúde — explicou o professor.

As ações de prevenção incluem a orientação sobre como se fazer uma boa higiene bucal. Há também uma frente do Brasil Sorridente que é o Programa Saúde na Escola. O trabalho das equipes de saúde bucal é unificado com o de outras equipes de saúde e há orientação até mesmo sobre a merenda escolar.

— Se nós conseguirmos equacionar o problema do consumo de açúcar na escola, não vamos estar prevenindo apenas a cárie, o que não é pouco. Também estaremos prevenindo o diabetes, a obesidade. É um trabalho de promoção da saúde dentro da escola por meio de uma alimentação saudável, por exemplo. Essas ações são feitas pelos profissionais da atenção básica — explica Pucca.

Canal

O programa também ampliou o acesso a tratamentos especializados. Em 2003, apenas 4% dos procedimentos odontológicos oferecidos pelo SUS eram procedimentos especializados. Como relatou o professor Pucca:

— O setor público não oferecia o tratamento de canal. Quando você precisava fazer esse tratamento, tinha que recorrer ao setor privado, que cobra de R$ 200 a R$ 400 por dente. Quem não tinha dinheiro para fazer isso tinha o dente extraído. Essa era a história natural da perda dentária no Brasil.

Com a implantação dos Centros Especializados de Odontologia (CEOs), segundo Pucca, hoje 25% dos procedimentos odontológicos já são especializados. Hoje já há 2,5 mil CEOs distribuídos por todas as unidades da Federação.

— Devemos crescer muito porque a demanda reprimida ainda é alta. O brasileiro ainda não tem acesso a tratamento odontológico especializado de uma forma geral. Os CEOs ainda não são suficientes. É preciso expandir. E isso ainda demanda investimentos públicos — projeta.

O professor considera importante a proposta de institucionalizar a política de saúde bucal para que o cidadão não fique na dependência dos governos que tenham sensibilidade ou não para investir em saúde pública. Ele lembra que o cidadão precisa exigir isso do poder público, principalmente dos governos municipais.

— Se o seu município não tiver atendimento odontológico público, você tem que cobrar do vereador e do prefeito para saber se a verba está chegando, se ela foi pedida, e para que eles de fato priorizem isso no município.(Ag. Senado) Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

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